quinta-feira, 23 de abril de 2009

Hábito

Antes, nunca me sentia tão agradável ou tão feliz ao andar de ônibus. Hoje, é nele que executo uma de minhas atividades prediletas. Não pegando a Avenida Agamenon Magalhães, hoje, quase sempre se torna prazeroso estar num coletivo.
Permeio os meus olhos quase ébrios desmistificando aqueles traços desconhecidos, aquelas vidas interligadas por alguns minutos e freadas. É bom estar sentado e escrevendo sem papel. Os desvios dos meus olhos vão paulatinamente criando essas dúzias de frases. Gosto de sentar nos fundos. Atrás se tem uma visão privilegiada. É inevitável, mesmo de forma não intencional já me virou um hábito ficar reparando tudo o que ocorre com o comportamento humano dentro de tal veículo. Trata-se de uma verdadeira passarela da vida.
E se tem uma coisa que me deixa um tanto inquieto e sempre me faz sorrir é a satisfação enorme que algumas pessoas têm ao adentrar no ônibus. Sentem orgulho ao passar pela catraca e só fecham o riso ao sentar. Talvez seja mesmo um ato vibrante esse, de sair de casa e ir à busca da luta diária, com bravura.
Pois bem, fato é que numa quarta-feira de março, enfrentei uma fila curta na integração e panhei um daqueles longos articulados. Barro-Macaxeira (via Várzea), um dos mais famosos entre os não possuidores de carro aqui na região metropolitana. Estava bem misto. Estou me referindo aos passageiros. É que tem dias que protestantes ou enfermeiros ou patricinhas suburbanas meio que dominam a visão. Naquele dia estava tudo bem equilibrado. Tinha pra todos os tamanhos, estilos, níveis. Como de praxe fiquei na última cadeira central. Duas cadeiras antes de mim, no lado esquerdo, havia um senhor de terno e havaianas verdes. Achei interessantíssimo o estilo dele. Ele virava o jornal de forma ríspida, nitidamente incomodado com a lamentável repetição de notícias. Ao meu lado sentou-se uma velhinha formidável. De uma elegância primorosa, dessas que deve se emperiquitar pra ir à padaria, por exemplo. Num dado instante, após detalhar bem todo o seu perfil, observando suas inúmeras bijuterias, perguntei-a se era possível me informar a hora. Ela imediatamente disse que não. Meio que fiquei constrangido, mas ela de forma doce e tocando com prazer no seu relógio dourado me explicou que ele não funcionava há algum período, que tinha de trocar a bateria. Agradeci de qualquer forma. Depois me agoniava a forma como ela puxava sua seda lilás cobrindo os dedos. Num dado instante ela explicitou: - As coisas hoje em dia são outras. Acompanhei o seu olhar e avistei duas meninas com maquiagem pesada, gravata e de mãos unidas. Surpreendentemente, percebi que no rosto da idosa não se fazia um ar de reprovação.
Já na metade de meu percurso se aproximou um garoto franzino, negro, de olhos graúdos. Devia ter uns 12 ou 13 anos. Ele se pôs no meio do ônibus, bem no local onde fica uma espécie de mola elástica. Estava vestindo uma camisa suja que era de algum programa educacional do governo, segurava uma bíblia de bolso na mão direita e estava descalço. Num impulso ele começou a desafinadamente entoar os hits evangélicos atuais. Eram lindas letras. Confesso que se tem uma coisa que não suporto é estar no ônibus e alguém estar pregando lições de vida, rezando padres-nossos e ave-marias, lendo passagens bíblicas e etc. Não tenho nada contra a manifestação religiosa, mas é que a maioria deles acha que detém a verdade e se empolgam ao ponto de quase gritar. Aquele garoto era diferente, ele tinha um brilho nos olhos. Mesmo com os pés descalços, tinha uma dignidade perceptível. Ele não apenas entoava aqueles louvores como muitos fazem, ele acreditava em cada ponto das músicas. E não estou dizendo que tinha uma fé abaladora, não. É que ele sentia felicidade naquele ofício. Não falava nem pedia nada a ninguém, somente continuava entoando sílabas dentre lombadas e curvas. E todos o davam atenção. “O Monólogo do Oprimido”, e era uma atuação esplêndida. Foi então que chegou o meu ponto de descida. Ele me acompanhou com os olhos. Antes de mim, estavam prontas para descer as meninas de gravata, e ele não as olhou em nenhum momento com um ar de indiferença, mesmo vendo a nítida expressão do amor entre elas, é como se ele fosse uma curta representação do Cristo, aquele que vivia dentre o povo, que não julgava que amava incondicionalmente. Fez-me lembrar alguma passagem onde Jesus filosofou alertando aos seguidores que tivessem negligência ao encaminhar a crença e as palavras, pois até as prostitutas poderiam ser as primeiras a estarem na entrada do reino. Assim, o motorista parou e cumprimentei o garoto com um leve adeus nas mãos, ele respondeu com um sorriso nos lábios continuando a cantoria.
Desci daquele ônibus diferente, tinha aprendido algo novo que até dado momento não sei nomear, e creio que não seja preciso querer intitular. É que aquele garoto, o qual nem me recordo plenamente os seus traços, me encheu de luz. Ele conseguiu tocar num ponto vulnerável, me fez enxergar a plenitude que há na desigualdade que caracteriza o nosso cotidiano.

7 comentários:

Fernando" M.Neto disse...

Muito bom esta filosofia...

Estas crônicas narrativas, que dá pra ouvir a voz do meu amigo Elilson a decifrar cada vírgula, me faz introspectar nessa análise íntima, clariceana...

Não só a você o menino do canto despertou algo... Você nos contaminou com esta literatura.

Muito bom estar aqui. Até a próxima...

Tobias Farias disse...

Faço minhas as palavras do Ir" Fernando".

Muito bom estar aqui novamente 'lendo você' guri !

Adoro essa narrativas,
e o legal desta em particular,
é que você me fez lembrar que a algum tempo eu tinha o mesmo costume,
e quando parei para recordar quais as observações que fiz durante as minhas últimas -e não poucas- viagens no coletivo,
vi que não tenho apreciado estes momentos como outrora.

Amanhã irei usar ônibus,
então,espero voltar a apreciar o que há de bom nesses momentos.

Até a próxima guri...

Luz"Paz"

La(ize) disse...

"É bom estar sentado e escrevendo sem papel." Eu lembrop de Tiids tirando onda contigo oksaoaskoask.

Eu adoorei o texto. Muito, muito bom.
E o senhor de terno e havaianas.. Isso é qe é estilo ^^ okasoksao \o
Adorei. =D

Unknown disse...

elilson um garoto surpreendente...
te adoro amigo continue sempre com suas crônicas,pois elas são ótimas...
beijos

Tobias Farias disse...

Guri !!
Ganhasse um Selo.
:D

Vai lá no meu Blog e
pega ^^

Rafaella disse...

Quem é que nunca se deparou com uma situação dessas em um coletivo não é? Você achou a maneira certa de definir os sentimentos nesses tipos de ocasiões.Muito interessante a reflexão!

André Bezerra disse...

Onibus sao o 2º maior local de filosofia da modernidade!
o 1º sao os banheiros!