quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Parelha



(Dedicado, também, à Analice Croccia)

É da graça de ter alguém que você possa parar na beira da calçada e olhar indo de costas ponte adentro, acima, abaixo, envolto pelas margens do canal-rio, pela fachada do São Luiz, pelos ônibus, pelas pessoas, pela algazarra suave da noite, pelo cansaço vibrante da lua que logo mais tem de virar sol. É essa graça de estar intacto na beira da calçada, com o olhos focados naquele corpo-alma celestial, tendo a certeza de que vai virar umas quatro, cinco, tantas vezes na geometria-percurso da ponte, sorrir, balbuciar palavras de longe e responder aos corações formados com os braços na cabeça ou com as mãos na altura do peito.
É da bênção de ter um sorriso para beijar. É da sorte de ter alguém que o desperte da sonolência interminável das manhãs para que seu dia possa começar. É do estado de paz imensurável que se sente quando unido: por um olhar, um sorriso, um toque, um abraço, o mundo parece estar em suspensão. É da dádiva de ter fotografias pulsando dentro do peito. A inefável arte de fotogr-amar.
Alegria seria pouco. Essa graça-bênção-sorte-estado-dádiva só poderia ser Felicidade.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

21 Gramas de Vermelho

Contornou silenciosamente o batom em seus lábios. Olhou-se no espelho bruscamente, não conseguia encarar a si mesma. Sua face era a memória que não queria ter. Manteve-se em frente ao vidro manchado de fungos alaranjados, mas de vista tampada. Com as pálpebras obstruindo a duplicação da realidade, buscava a plenitude do silêncio. O Silêncio que gritou-lhe um leve suspiro de sua avó. Então, abriu os olhos e deu uma guinada de 360° apreciando milimetricamente o seu universo vermelho. Era a predileção cromática que herdara da avó. Viviam imersas no vermelho. Paredes, roupas, móveis... O que se tinha, era pouco e vermelho.
Entoou seu olhar em direção à cama da avó. Suspirou vagarosamente. Beijou-a demoradamente na testa macia, sem acordá-la. Um beijo leve, devoto e amoroso. Contemplava sua avó com uma nostalgia antecipada. Um saudosismo incerto. Estava decidida. Deixou-lhe um bilhete corriqueiro dentro da amarelada Bíblia de cabeceira. Certificou-se de que tudo estava em sua devida ordem e partiu completamente vermelha, dos sapatos ao diadema, ao seu labor diário: trabalhava noite adentro.
Era meticulosa em seu ofício e cumprira normalmente o que era destinada a fazer. Mas, aquela noite pareceu mais curta que o habitual e cada minuto fora despretensiosamente premeditado, pré-meditado, cal-cu-la-do.
À beira do amanhecer, com o céu caiado por dentro de seus olhos, sentou-se numa esquina acinzentada. Despiu-se dos sapatos. Enrolou num papel rabiscado o apurado do serviço e guardou no meio de seus seios. Cuspiu as sobras de esperma da noite e, então, deglutiu sem demoras quantidade considerável de veneno estricnina. Antes que o sol surgisse completamente, entre espasmos, vômitos e bombardeios no coração, as cores foram padecendo uma a uma em sua vista semi-aberta. Até que restou a imensidade vermelha inerente aos quase mortos. Lembrou-se da avó. Com a cabeça trêmula encostada numa parede enfeitada de lodo, tocou em seus lábios um sorriso que ameaçava escapulir. Padeceu embalada pelo vermelho e através do quase sorriso se desprenderam seus 21 gramas restantes de vida. Vermelho-vida. 21 gramas que pesavam sua alma.