segunda-feira, 20 de junho de 2011

(Des)Tino

Com as asinhas quase retalhadas pelo vento forte, voaram incansavelmente por longos dias e magras noites até encontrar um cacho retrô de lâmpadas incandescentes com a seguinte descrição em vermelho, rabiscada num graveto: Dá-me luz. Moradias para mariposas.

Foto de Nilton Leal.

Antologia da Esperança

A morte
[seca e concreta]
Não vale a pena e a saliva de ser cultivada.
Os corpos se entendem, sim. As almas também.
[Há tanta coisa a se fazer...pois toque um samba elzístico, seu moço!] Beeem alto! Isso, vai!
Vou-me embora para o mundo! U-ni-do
Vou-me. Ser feliz.
Quero me lembrar de tudo:

Tenho vontade de ir ao Catro, abraçar a minha avó.
A dor da perda tem o peso da vida. Isso deve ser amor.

Quero anoitecer.
Intensamente pensando nos sonhos e no que já cultivei.
Nessa vida inteira que há de ser.

Quero amanhecer.
Viver
Viver de corpo e alma
Renovando-me.
(Todas as manhãs a tua voz ao telefone me dá lições
[de sorrir).
(Todas as manhãs, a criança que descobre um mundo novo me dá lições
[ de crescer).
(Todas as manhãs, a busca pelo sabão que limpe a alma² me dá lições
[ de seguir).

Preciso me respeitar. Antes de qualquer coisa...³

E quando um novo tempo chegar
Encontrará minha alma lavrada, meu peito limpo e feliz,
Minha mente posta,
cada parte que me constitui, dentro de mim e dentro do outro,
abraçando os grandes acontecimentos que vêm, vêm
Mansamente como pombas.*

-x-
Apropriação do poema "Antologia", de Manuel Bandeira.
¹: referência ao meu haicai da solidão. a você.
²: sobre o meu "Resíduos".
³ Patrícia Tenório
*: Nietzsche.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Manderlay é Aqui.

"...e a grandeza épica de um povo em formação nos atrai, nos deslumbra..." Caetano e Gil, "Haiti".

Bem, eu nunca havia assistido “Dogville” até semana passada, como também ainda não vi uma série de “cult classics”. Gostei de Dogville, gostei mesmo. Mas, algo ficou a ser preenchido dentro de mim que me faz recorrer ao clichê: o bolo era ótimo, mas faltava a cereja. Como não gosto muito de cereja, a não ser que venha em forma de confeito refrescante, senti falta de uma cobertura mais saborosa. O complemento veio hoje quando resolvi assistir à continuação, o filme "Manderlay". Contudo, não estou aqui para escrever sobre o filme, nem somente sobre o quanto possa ter mexido comigo. Estou aqui apenas para escrever. Escrever. Talvez esteja escrevendo nessas linhas digitais sobre como nada que nos acontece é por acaso. Eu não vi Dogville "tardiamente" por acaso: vi porque precisava assistir Manderlay, hoje. Também não parei na primeira quinta-feira de fevereiro pra assistir Manderlay por acaso: eu precisava escrever. Fato é que a obra do agridoce Lars Von Trier me fez, na tarde de hoje, sair da caverna, motivando-me a interromper o hiato da minha escrita e subitamente renovar o meu Filosofia Introspectiva.
Poderia estar publicando como minha primeira postagem de 2011 o desenvolvimento dos fragmentos de contos, frases... que venho adiando, engavetando há dias, semanas, meses. E também não deve ser por acaso, o ócio. Enfim, quando terminei de assistir até a última linha dos créditos finais do magistral Manderlay com sua reflexão ambientada numa América Racista e Opressora dos anos 30, que tão bem reflete a América contemporânea, a América de sempre, tal reflexão conduzida pela riquíssima (em termos cênicos) personagem central Grace, que pode ser em si uma das faces da América, me deu duas vontades enormes. Uma delas era de aplaudir o cineasta e gritar que ele é incrivelmente foda na esperança de que onde ele estivesse sentisse uma sensação boa (e que não seria, pois, por acaso), enquanto que a outra vontade eu só sentia, mas não sabia intitular. Então, quis escutar o meu disco "Do Cóccix até o Pescoço" de Elza Soares. Precisamente duas gravações, "A Carne" e "Haiti", que falam, como o filme, sobre todo esse mar de desigualdades que banha cada ilha que somos nós e que, na interpretação visceral de Elza, figura já tão oprimida, ganham uma força imensurável.
Porém, fui levado a interromper a vontade de ouvi-la por alguns minutos quando fui atraído pelo noticiário repetitivo na televisão. Vi duas imagens estarrecedoras. Numa delas, em mais um ato homofóbico, um jovem, branco, recebia uma lâmpada florescente com toda força, no meio da testa, em plena Avenida Paulista. Na outra, um mendigo, negro, era amarrado por três monstros e estupidamente espancado. As imagens me deram aquele nó na garganta, aquela sensação de impotência traduzida pela minha cabeça que, acompanhada pelo meu olhar horrorizado, balançava quase que involuntariamente em gesto de negação, de indignação. Foi, então, que descobri que a outra vontade que senti era escrever, eternizar essa tarde fraseando-a num papel. Quis escrever e assim fazer algo, não me esquivar totalmente dessa situação. Situação que somos nós. Embora escrever seja pouco, mas é alguma coisa. Quando escrevemos, abandonamos o nada.
Assim, antes de me deixar guiar pela caneta no papel, fui até o meu quintal, ouvir no último volume as gravações de Elza, propagando-as ao morro que me contém. Cantando junto com ela, via além, além, bem além daquele morro sem poder evitar: Manderlay, a cidade fictícia do filme, é uma realidade atemporal. É uma realidade aqui ou lá, no Brasil ou na América. Somos na verdade, uma versão mais pobre dessa América. Como ela, somos um país multifacetado, expansivo, plural, ambicioso e estagnado socialmente em demasia. Somos no fim das contas, estadunidenses ou brasileiros, um mero povo em formação.

P.S.:Se você também assistiu ao filme, já ouviu as canções, viu as reportagens ou simplesmente leu este meu moinho literário em que a palavra "que" aparece vinte e três vezes, saiba que (vigésima quarta aparição) nada disso é por acaso.