quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Na Pele

O mundo dorme em sua quase totalidade. Do meio dessa praça observo os segredos do silêncio.
Há pouco uma legião de Andróides passou por aqui. Vestiam-se quase que iguais e carregavam nas mãos um Livro Sagrado que talvez nem eles entendam, que dirá eu entender! Por sorte, eles não vieram me incomodar.
Os demais invisíveis fazem diferente de mim: estão dormindo nas beiras dessa praça viva e suja. Um saco plástico dança no vento. O ócio noturno me leva a acompanhar sua sincronia. Ele só pára de poluir o ar quando fica estranhamente preso em uma das letras da fachada do Diário de Pernambuco.
Por distração, meu pé esquerdo toca na lama. Limpo-o nos meus próprios jornais.
Os pombos descem um a um dos fios elétricos dos postes. Como eu, eles também não querem dormir. Dormir para quê?! Brigam pelas fatias de lixo derramadas no asfalto.
Deito meu corpo vagarosamente. Um livro que encontrei na margem do canal-rio me serve de travesseiro. Devo saber de cor o que há nele. Devo negar sem dó o que há nele. Vejo o céu escuro tentando me lembrar qual é mesmo o meu nome e porquê nasci.
Esse céu goza de mim, pois só expande meus pensamentos. Ouço passos. Talvez sejam as putas ou os travestis, talvez me dêem uns trocados. Ergo minha cabeça, não são eles.
São bandidos trocando um lero com alguns bandidos que pertencem a uma outra classe, são uns que vivem travestidos de alguma função de segurança pública. Ouvi dizer que esses tantos envergonham uma nação de homens. Eles me dão medo da mesma forma que os bandidos corriqueiros.
Volto a me sentar, sem muitos ruídos. Os homens fazem barulho, riem alto. Estão zombando de dois garotos que caminham abraçados. Os jovens apressam os passos de mãos soltas. Penso que vieram das bandas do Marco e vão se arriscar a esperar o bacural fora do Cais.
Meu foco se perde entre os passos daqueles dois adolescentes. Fico em transe, até que um barulho de motos reacende minha atenção.
Os homens maus foram embora. Alguns carros começam a transitar de repete. São tantas rodas, fumaça e lixo que minha visão fica opaca. Por um instante achei ter visto meu falecido cachorro. Passei o dia pensando nele. Um homem que tem a frieza de envenenar um animal merecia ser esmagado como um carrapato, com apenas um bom passo firme, pois eles poderiam me envenenar da mesma forma. E meu cachorro não podia falar. Posso ao menos gritar, dizer...Mas, e ele?!
Ao mesmo tempo reflito se também sou cruel ao colecionar cadáveres de aranhas indefesas e outros minúsculos debaixo dos meus chinelos.
Meus olhos caminham pelo deserto urbano querendo encontrar rastros de mim.
Há um livro largado do outro lado da pista. Levanto e vou ao seu encontro. É melhor fazer algo mais útil enquanto o sol não atrapalha e não traz a multidão.