quinta-feira, 8 de julho de 2010

Reflexo

Caminhava descalça naquele casebre cor de caramujo. Sentia cada folha seca, cada rastro da intempérie que soprava por aquele lugar quase perdido entre o céu e a estrada.
Vestia um longo vestido azul com estrelas amarelas na estampa. Esperava pelo quê nem sabia denominar.
Vivia na companhia de sua tia-avó. Era o único pigmento de vida que palpitava na íris de seus olhos. Banhava a Senhora com devoção. Depois a colocava na cadeira e balançava até que ela adormecesse por um tempo.
Parecia não querer voar dali, mesmo sentindo que suas asas lutavam contra sua pele para poder brotar nas costas.
Ela não vivia um quadro colorido, tampouco preto-e-branco. Vivia num efeito de sépia.
Obedecia cautelosamente a um ritual que criara sem a mínima pretensão. Cuidava de sua tia, andava descalça tateando o chão da casa com os pés e ficava alguns segundos paralisada na porta de entrada. Enquanto olhava a sua paisagem particular chegava a pensar no dia em que a morte pingasse sob o telhado, no dia em que ficaria definitivamente sozinha na vida, no dia em que teria de decidir estar ali para todo o sempre ou partir pelos mistérios que poderiam viver além daquele jardim.
Sempre acabava suspirando pelos olhos, lagrimejando pelos lábios e como se alguém desse uma tapa na beira de seus ouvidos, ela voltava ao que pensava ser a Realidade. Então, continuava sua rotina caminhando pelo jardim. Era um bucolismo arcaico em forma de jardim. Sentava embaixo das duas árvores entrelaçadas e lambuzava-se com mangas. O alimento que não poderia faltar em sua vida, era como uma terapia. Ela chupava o fruto até que sua roupa estivesse manchada, até que o contorno de sua boca estivesse amarelo, doce.
Depois se dirigia até o centro do jardim onde havia uma cacimba velha e desbotada. Colhia água com a balde, lavava seu rosto e fugia mais uma vez da Realidade. Sentada no contorno da cacimba, a moça passava o tempo que fosse olhando para a água lá no fundo. Seu rosto ganhava expressões melancólicas, alegres, maduras, infantis, expressões sonhadoras. Sonhava em descobrir os mistérios daquela água que existia logo abaixo de seu corpo, desejava descobrir os seus próprios mistérios. Necessitava saber o que seria Amor. A palavra que ouvia desde a fabricação de suas primeiras memórias. Olhar aquela água remetia sua mente ao Amor, mesmo que ela não entendesse completamente, era da cacimba que se via o fundo do amor lá de cima.
É da cacimba que se vê o fundo do amor lá de cima.

5 comentários:

nilton leal disse...

eu gosto! (:
como se, caindo do céu, essa frase veio até você para ser sua. só sua.
foi mágico!

Anônimo disse...

Tipico de alguma menina da zona rural de uma cidade de interior... ela iria se assustar com MODERNIDADE do amor na cidade grande.

Otimo texto, CONTINUE!

Hermínia Mendes disse...

Uma típica Erêndira! A gente se encanta. Se envolve.

INCRÍVEL essa frase:
"Sempre acabava suspirando pelos olhos, lagrimejando pelos lábios e como se alguém desse uma tapa na beira de seus ouvidos, ela voltava ao que pensava ser a Realidade."

beijo n'alma sua.

Natani Lima disse...

Quando você espera por uma coisa que não sabe bem o que é. Só sabe que tem que esperar.

Deyse Leitão disse...

"É da cacimba que se vê o fundo do amor lá de cima."

AMEI o blog!!! Simplesmente encantada pela profundidade das palavras com as quais aqui me deleito.

Obrigada pela visita ao meu blog e pelo comentário à crítica, pois assim tive a oportunidade de conhecer o Filosofia Introspectiva!

Estás entre os meus favoritos!

Deyse (palcosecoxias.blogspot.com)

Evoé