sábado, 31 de julho de 2010

Indescritível

Era destinado a caminhar.
Enfrentar os martírios do sol, conhecer cada rastro da solidão agreste dos desertos da vida, era pontos essenciais ao seu ofício. Vivia de escrever. Escrevia para (re)viver a cada vírgula, a cada fragmento de pensamento transposto em vida num papel.
Sem nem um titubeio de incerteza, seguia suas vontades repentinas. Beijava a testa de sua mulher, acariciava as orelhas do gato siamês e passava pela porta do casarão que herdara. Uma mochila preta nas costas carregava o suficiente para os dias de busca, dias de exílio em meio a outras vidas, em meio a outros tipos de vida. Levava papéis brancos e amarelados, nunca utilizados e uma ou duas roupas limpas.
Chegava a terras distantes do que se chama urbano, chegava a terras próximas do que se grita socorro (!), porém uma clemência distinta dos seres que vivem rodeados de prédios, esquinas e cinza. Ali, naquelas porções de barro, o socorro era o estopim de quem se sente pequeno, mas que sabe aproveitar cada partícula de ar que absorvia.
Naquela procura de novas palavras, em especial, viveu algo mais singular e curioso que das outras vezes. Desceu do ônibus, pegou carona numa carroça repleta de plantas e moscas, trocou mínimos cumprimentos com o velho calejado que guiava o veículo, sem nunca chicotear o animal-combustível que era tão calejado quanto seu dono. Eram calejados pelo sol, pela fleuma nunca compreendida, sempre conformada. Passou cerca de doze minutos trotando entre galhos secos e poças de lama até pedir parada. Desceu em meio ao nada ludibriado por uma ave magrela que se alimentava do asfalto da terra. Sentou numa pedra, contemplou o vago até que seu pescoço debruçou-se para cima, fazendo-o ler por inteiro a árvore que estava encostado. Levantou-se. Olhou ao redor e constatou que todas as demais árvores apresentavam a mesma estrutura ácida e peculiar que aquela. As folhas, nos galhos quase sem seiva eram substituídas por sacos plásticos. Plásticos que o vento trazia de todo lugar estacionavam ali, sem piedade, criando uma paisagem artificial, manchada.
Então, caminhou até que o sol rachasse seus lábios e enfraquecesse suas pernas. Por sorte encontrou uma caminhoneta de partida. Vários corpos amontoados. Alguns sentados, outros pendurados por armações de madeira- como araras, várias delas juntas no mesmo espaço, às vezes na mesma fatia de madeira. Partiu em pé. Uma mão presa à madeira, a outra segurando a mochila. Pálido e tomado pela sede, enganava o organismo sorrindo vez em quando ao bebê que estava em sua frente. No colo do pai, a criança o olhava de um jeito indescritível, parecia querer confortar sua agonia. A mãe da criança o cumprimentava sem muito ânimo e o pai percebia a aflição daquele homem sem cor, seguindo como eles em busca do nada, fugindo do que nem se tinha certeza. Eis que o homem simples, dono de uma rudez inocente, colocou a criança no colo da mãe e convidou que aquele escritor vivendo um dia de retirante se sentasse em suas próprias pernas, para que aliviasse seu cansaço e suas náuseas.
Assim, seguiu pelo resto da viagem, como um menino acolhido com devoção pelo colo de seu tutor. O tutor que não sabia nem o nome, tampouco quais eram os seus sonhos.

5 comentários:

Tobias Farias disse...

Não duvidaria se isto fosse mais uma alegoria a mais uma de suas aventuras desbravando o mundo.

Mas sendo ou não, me prendeu até o fim.

Não como formas teu estilo, não sei quantos autores passeiam pela tua mente, mas sei que cada texto teu trás uma surpresa nova. O mesmo escrito mas com um escrita surpreendente.

Barreiras são tão pequenas para quem sabe filosofar.

... disse...

vou falar o que aconteceu quando eu li: me arrepiei rs. incrivel que msm te conhecendo, e sabendo tua forma de escrever , ainda me surpreendes a cada texto, abraços

Bárbara Lino ♥ disse...

O acolher liberta o acolhido, mesmo quando não o conhece.

Lindo!!! *-*

Lays Vanessa disse...

o tempo passa e cada vez que venho aqui é como retornar à aquela velha praça do campo santo vazia num dia de domingo. Meu amigo, tuas palavras são bálsamos à minha alma que, saudosa, não vê a hora de voltar.

Adoro tua filosofia introspecta.

um beijo.

Jonatas Onofre disse...

Sou costantemente agredido por mimhas leituras, adoro isso,geralmente tenho muito o que dizer sobre o que leio mas as palavras me fogem diante de teu "Indescritível",digo apenas que teus contos filosóficos-poéticos são intensos, vertiginosos- e essa qualidade de atração, de chamar a atenção, de impor a reflexão é o que mais admiro em quem escreve.Mas há sutilezas, que ao leitor ingênuo podem passar, que são as linhas mais belas de teu texto, a história se diluindo em(por que não)versos... narrativa-poema, num mostrar constante de imagens, numa construção tão próxima de uma tênue barreira erigida entre prosa e poesia.
A vertigem vem da ação, acontece rápida, o fio concreto da história veloz a deslizar. ATENÇÃO!! é o que gritas placidamente nas linhas, pedes uma nova percepção, um novo olhar sobre o que contas, poetizas e intensamente filosofas.

Um Abraço
Jonatas Onofre