domingo, 8 de novembro de 2009

Exercício Cênico


(Para Hermínia Mendes).

Estava de costas com a vista grudada na imensidão branca da parede. Exorcisava os anjos da minha mente, limpava qualquer brecha de inquietação. Buscava uma neutralidade nos pensamentos. Enxugava os resíduos de música, conflitos, imagens. Preparava-me para conceber esse encontro inusitado. Não sabia quem ou o que iria cruzar esse caminho, mas tinha razão de que quando me virasse já estaria ali. Alguém ou algo. Da mesma forma que tinha noção que seria o único Observador. Um observador também invisível.
Inalei o ar, sacudi os ombros e me virei de uma só vez. Fixei os meus olhos no canto mais à direita e lá estava Ele.
Desdenhando de tudo que pudesse estar a sua volta ele limitava suas ações a manusear os cardaços de seu All Star vermelho.
Do meio daquele asfalto cinza e inabitado eu o observava com cuidado. Não queria interrompê-lo nesse momento de afastamento da balbúrdia. Quem seria ele? Como chegara ali? Nem me perguntem o seu nome, pois a experiência não me deu tempo para ousar em perguntar, o que seria tolo, já que ele certamente não me enxergava. Mas, ele poderia ser Tiago ou Honório ou Leandro , quem sabe poderia ser mesmo Elilson ou até João Paulo. Dê a ele o nome que sua alma apontar.
Debruçado por seus joelhos, ele ia cessando a relação estabelecida entre seus dedos esquerdos com seus sapatos
Ao seu lado tinha uma grama úmida e do outro um bueiro destampado. Sem muito esforço ele conseguia saborear aquele cheiro de verde e terra molhada (e acredito que eu também possa ter sentido). Na verdade batia em mim uma vontade de seguir os seus atos, como se fosse representá-lo. Mas meu dever era observá-lo e apresentá-lo para assim perder a exclusividade de vê-lo.
(Você já consegue começar a vê-lo?!)
Ele ergueu seu rosto. É um belo rapaz. Por um instante seus traços pareciam já estar em meu cérebro, mas bastou que eu respirasse um pouco, uma única vez, para que tudo fosse inédito novamente.
Fazendo curvas em seu pescoço com os dedos ele começou a soltar risos. Os risos que transbordavam do vale sombrio das águas que escorriam em sua face.
Sua expressão insinuava carência. Mas não tinha nada ou alguém perto dele para assisti-lo nessa carência.
Concertando o penteado, ele quis estreitar o contato com aquela grama. Existia por entre as folhinhas encharcadas um lodo. Assemelhavam-se a um tecido, quero dizer que a grama tinha uma textura, uma leveza que era boa para as mãos. Parecia pelúcia. É isso, pelúcia. Talvez aquela criatura singular nunca tivesse tocado em pelúcia antes. Era nítido que ele gostava daquela descoberta. E foi debruçando parte a parte do corpo naquela grama-pelúcia.
Seu corpo já estava suavizado, pois seu interior devia estar mais tranquilizado. O nada era Tudo naquele momento, naquele lugar. Toda a tensão dele (e minha) já inexistia.
Deitado, sua face ficou mais próxima ao bueiro que lhe fazia companhia desde de que o avistei. Era um ponto importante naquela miragem, mas que perdia um pouco da notoriedade natural que teria por conta da imensidão que tinha aquele rapaz. Mas vez ou outra os seus olhos cerravam aquele bueiro e me levavam junto a observar também. Em alguns segundos pensei que ele fosse pular naquele buraco ou tentar se encontrar dentro dele, por conta da forma fixa que olhava ao ponto aparentemente seco e obscuro, apenas.
Assim, ele encaminhou minha vista às raízes frágeis, porém verdes e vivas, que sambavam das beiradas daquele bueiro. Talvez renasciam do esgoto, mas nem aparentavam ser profundas.
Ele manuseou as folhas que surgiam do bueiro. Logo as soltou e encostou os lábios no ante-braço direito.
O vento que balanceava seus cabelos também entoava uma canção de ninar. Acredito que era disso que ele precisava, que buscava ali (e talvez eu também buscasse, e você também vai buscando?!): pelúcia e canção de ninar. Bucolismo urbano.
-Ok, já deu. Ótimo, eu pude ver tudo.
A doce voz me trazia de volta ao nosso ofício.
Não pude me despedir dele, pois nem pude me apresentar. Seria demais interromper a sua fuga. E ele estava sendo a minha fuga. Porém, ao retornar, as raízes do bueiro foram a última coisa que eu vi.
Provavelmente, foram Elas, e só Elas que eu via o tempo todo.



Essa experiência surgiu de um jogo cênico proposto pela minha diretora/amiga/companheira de Filosofia e Introspecção, Hermínia Mendes, em um de nossos ensaios.
Ilustração de Dayse Ramos (ou Xiinhah, para os mais chegados).

Ah, se você tiver a vontade de comentar, responda-me uma coisa: qual o nome que sua sua alma apontou para Ele?
Até a próxima.

10 comentários:

Eduarda Ramos disse...

Uau! Confesso que fiquei muito confusa com esse texto, de hora em hora voltando algumas partes, bem viajado pra mim, e tão detalhista (o que mais me chamou atenção). Foi algum tipo de laboratório?! Não sei.
Mais eu gostei! interessante, ainda quando trás a opinião do leitor ao que foi escrito.

p.s: Dayse ''RAMOS''? rs

Abraço.

... disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
... disse...

ameey o texto Elilson
e ao contrario de Duda não me perdi esse me levou até o fim sem nenhum pretesto de interrupção
um nome :S ... realmente nuum seei penso nele como uma generalização assim como todos os homens se chamam João .
se superas vissi
amo te ler meu bf
ps: Dayse Ramos !! oaisoaisoais

Eduarda Ramos disse...

Rhebeca é tão clara e engraçada, quanto uma poça de merda! rs.

(Brincadeira viu)

Tobias Farias disse...

Viajei.

Não entendo de teatro, mas o texto ficou muito bom ^^

Ps.:Sabe que nem pensei, a leitura suprimiu minha resposta.

Unknown disse...

Tão orgulhosa versus encantada, com tanta coisa. Desde o começo do exercício eu conseguia ver claramente Sólon (é, esse foi o nome que me veio agora!) e lendo aqui, ele ficou ainda mais vivo. Foi bom participar do 'nascimento' dele. É sempre maravilhoso trabalhar/estar/conversar contigo amore! Apaixonada por suas palavras, e grata pela dedicação.

ps.: Amei a parte: "companheira de Filosofia e Introspecção"; isso que sinto!

beijocomamor,
Hermínia.

... disse...

Duda e vc é tão doce e singela como um limão (y)rs
(Brincadeira viu)²
:*

Anônimo disse...

Tá... falando sério, através das palavras eu vi toda cena mas não entendi... Como eu ví muito bem o espirito dessa pessoa, fiz análise dos nomes que deste:
*Leandro - Solitário e vivás;
*João Paulo - Socialista, visionário e introvertido;
*Tiago - Compaixão e sensibilidade;
*Honório - Sábio solitário;
*Elilson - Aventureiro/Curioso e comunicativo.

Bom, observando os estereótipos, eu acho que ele tem cara de João Paulo ou Elilson...
_______________________________

FA: Também acho que já é tempo de trocarmos e-mails
ßJ§.

Fernando" M.Neto disse...

é incrível tua capacidade de descrição...
Cara, de repente um filme dos vários Elilsons que conheci, das diversas formas que conversamos, foi sendo mesclados pela tua narração singela e apaixonante...

Gostei, cara!
Até outra narração, ou quem sabe, prosação...

Miquésia Queiroz disse...

me consentrei no texto,e esqueci d qm tu falava...nem imagino o nome deste,,
texto perfeito,,um dos melhores pra mim.
bjíín