Eu ainda caminhava pelo centro da veneza brasileira, com intuito de aguardar um coletivo, quando soube da notícia.
Ao chegar em casa, entrei em minha alcova infinitamente minha, e pensei três vezes se iria ou não até a capelinha. Antes de sair fixei meus olhos no "Ordem e Progresso?" que destaquei em negrito no centro de nosso símbolo nacional, e patriota, que fica pendurado numa parte escondida da parede lateral.
Chegando na entrada transversal vi a capela lotada. Ao adentrar na igreja falei com alguns conhecidos e de longe avistei meu irmão. A comunidade estava reunida pronta para o provável moratório ato litúrgico.
As beatas com seus lenços e terços de madeira. A juventude paroquial e seus modernos rosários coloridos. As pessoas trocavam olhares de misericórdia, de acalanto, de fraternidade. Os parentes e conhecidos lotavam as duas fileiras de assentos, juntamente aos curiosos que cobriam a entrada, afinal não é sempre que se tem um cadáver na igrejinha de Fátima.
À frente do altar estava o corpo a ser velado. Ao lado do caixão a imagem de uma Maria idealizadamente européia se fazia brilhante num lindo andor.
Derepente alguns iniciaram uma curta procissão com o desejo de ver a pobre senhora no caixão. Sempre considerei o ritual de uma missa de corpo presente um tanto mórbido e doloroso, mas algo fazia deste diferente. O nome da falecida era Dona Biu, uma senhora calada e alegre, mas que era conhecida por todos e isso fazia sua nobre alma presente. Em suas mais de 8 décadas de vida, ela dedicava as manhãs e noites dos sete dias da semana a cuidar daquela capela. E ali, onde sempre zelou, estava a sua matéria.
Enquanto eu sentia arrepios naturais ao assistir o pranto dos parentes, passou ao meu lado um cãozinho negro. O cachorro parecia desesperado, mas a sua fiel intenção era chegar perto do caixão; logo notei que o cachorro era especial, pois ninguém ousava em expulsá-lo do recinto. Sim! O mamífero abatido era de propriedade da Dona Biu! Ele permaneceu durante toda a celebração fúnebre e de explícita forma ensinou algo grandioso e puro aos racionais humanos que o cercavam.
Foi, então, que se encerrou a homenagem e cada um voltou-se ao seu lar. Contudo, a grande razão que me faz escrever esse episódio cotidiano, é que a anciã que tanto fez pela pátria como tantos idosos, faleceu num certo Hospital da(utópica) Restauração, mas morreu aguardando uma vaga na UTI. Parece surreal tal absurdo! Mas 1 vaga na UTI poderia ter prolongado os dias da devota velhinha.
Dedico então essas linhas à Dona Biu: um número inocente que se junta na cruel estatística dessa chaga infernal que os governantes ousam em chamar Saúde Pública. E se não fosse o bastante ficar refletindo em nervosia tal fato, ligo a TV e sinto enorme dor e revolta ao ver que um garoto de 5 anos foi metralhado, por engano, pelos homens da Segurança Pública: pelos destreinados infames travestidos de PM´s!
Sim, Renato! "Que país é esse"?!
9 comentários:
Nossa... Elilson, você já é jornalista... E é jornalista e poeta ao mesmo tempo, teu texto é uma mistura de Raimundo Carrero e Paulo coelho, teu texto foi mágico e real pra mim, em poucos minutos eu conheci intimamente dona Biu, conheci o corpo e a alma dela. Teu texto é um grito com classe, adorei a sutileza! Adorei a critica do texto, você a fez de uma forma fantástica, como é bom te ler, te sentir por aqui. Teu texto não é daqueles que causam desespero, mas teu texto é um convite de luta por um mundo melhor, é um texto que você acaba de ler e diz: eu estou contigo, vamos à luta! Ele abre os olhos e auxilia... Pois é, amigo, que país é esse onde a ordem é nenhuma e o progresso pouco é visto? Que país é esse que as pessoas morrem por falta de cuidados?
Encantada, Encantada, você me encantou! Menino tô apaixonada por tuas palavras, amei o texto do começo ao fim. Que refino, que classe, que texto, que critica!
"Que país é esse?"
Que mundo é esse? Que pessoas são essas? Que poder é esse?
Nossa realidade é cruel. E nosso grito de indignação fica, muitas vezes, preso dentro de nós. Deve ser isso que nos torna cada vez mais culpados.
Começando por nós... AÇÃO! Nossos mínimos atos fazem a diferença.
No momento, pensemos positivo. Muita reflexão é necessária para que uma solução seja encontrada. Lutemos pelo nosso mundo!
[...]
Boa crítica, Elilson!
Epifania!!!
Cara tu consegues produzir em meio a qualquer situação...
Como Clarice te influencia!
É muito introspecto.
Continue...
Fica na Paz.
Não deveria todos se contaminar com tua diretriz e tuas palavras?
Essa altivez, nobreza e garra como quem sabe o que fala, esse verbo em afirmação forte, justificando-se nas entre-formas poéticas...
Amigo, mas a tua alma é esquentada, te tira a morbidez, pela sua vontade do querer...
Dona Biu, que já é digna de merecer esse espaço em nosso 'introspecto', foi urtigante memória e compartilhada vida entre nós, com essa narração ligeira, sem fadigas, acompanhadas em vírgulas, esperando um final: vida.
Mas ela partiu: ponto.
Amigo, continue...
agora ficamos aqui, compartilhados de dúvidas, aonde estás?
Queríamos uma segunda parte, talvez em narração augusta nordestina ou camoniana, quem sabe clariceana, a narrar Dona Biu em espaço que agora ocupa...
Não sei como vc diz que eu escrevo bem!
Vc trata as palavras com tanta categoria e firmeza que eu gostaria de ter o mesmo dom!
Abraços cara!
E acabei de att o meu tb!^^
flw
Realmente. Essa vaga poderia ter dado uma chance para esta senhora.
A realidade é dura, mas não é impossível de mudar.
A parte que mais gostei foi a do cachorrinho... Ele foi a prova da fidelidade incondicional!
Abração!
Estava lembrando aqui...
Enquanto a classe média reclama e fala em descaso pelos atrasos dos aviões, férias perdidas, coisas assim, tem uma fila enorme de pessoas na fila da UTI, procurando salvar suas vidas...
Texto muito bom.
abraço!
É caro amigo, com o final endagador
de teu texto que reproduziu o estado estupefato do Renato, inicio meu breve e humilde contemplar de sua mais nova obra.
"Que país é este ?"
É o nosso país,o Brasil.
Mas, nos lembremos sempre, que com a mesma capacidade que temos de nos indignarmos com tais acontecimentos, podemos mudar essa realidade.
Somos novos cidadãos e cidadãs,
que como nossos pais ou tios puderam mudar parte de nossa realidade em 1984, podemos mudar a situação do nosso país.
Às ruas, às escolas, aos círculos de amizade, nós somos o poder de mudança.
Vivamos, nos preparemos,
pode não ser hoje, mas em um amanhã próximo com certeza, a mudança estará na mão de cada um de nós.
Vivamos, como cachorrinhos desta nação... que mesmo que a morte da mesma pareça certa, nunca a abandonemos.
Brasileiro com Orgulho,Pernambucano com Honra!
Seu leitor com satisfação.
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