quarta-feira, 16 de julho de 2008

Celebrando a Conformidade.

Eu ainda caminhava pelo centro da veneza brasileira, com intuito de aguardar um coletivo, quando soube da notícia.
Ao chegar em casa, entrei em minha alcova infinitamente minha, e pensei três vezes se iria ou não até a capelinha. Antes de sair fixei meus olhos no "Ordem e Progresso?" que destaquei em negrito no centro de nosso símbolo nacional, e patriota, que fica pendurado numa parte escondida da parede lateral.
Chegando na entrada transversal vi a capela lotada. Ao adentrar na igreja falei com alguns conhecidos e de longe avistei meu irmão. A comunidade estava reunida pronta para o provável moratório ato litúrgico.
As beatas com seus lenços e terços de madeira. A juventude paroquial e seus modernos rosários coloridos. As pessoas trocavam olhares de misericórdia, de acalanto, de fraternidade. Os parentes e conhecidos lotavam as duas fileiras de assentos, juntamente aos curiosos que cobriam a entrada, afinal não é sempre que se tem um cadáver na igrejinha de Fátima.
À frente do altar estava o corpo a ser velado. Ao lado do caixão a imagem de uma Maria idealizadamente européia se fazia brilhante num lindo andor.
Derepente alguns iniciaram uma curta procissão com o desejo de ver a pobre senhora no caixão. Sempre considerei o ritual de uma missa de corpo presente um tanto mórbido e doloroso, mas algo fazia deste diferente. O nome da falecida era Dona Biu, uma senhora calada e alegre, mas que era conhecida por todos e isso fazia sua nobre alma presente. Em suas mais de 8 décadas de vida, ela dedicava as manhãs e noites dos sete dias da semana a cuidar daquela capela. E ali, onde sempre zelou, estava a sua matéria.
Enquanto eu sentia arrepios naturais ao assistir o pranto dos parentes, passou ao meu lado um cãozinho negro. O cachorro parecia desesperado, mas a sua fiel intenção era chegar perto do caixão; logo notei que o cachorro era especial, pois ninguém ousava em expulsá-lo do recinto. Sim! O mamífero abatido era de propriedade da Dona Biu! Ele permaneceu durante toda a celebração fúnebre e de explícita forma ensinou algo grandioso e puro aos racionais humanos que o cercavam.
Foi, então, que se encerrou a homenagem e cada um voltou-se ao seu lar. Contudo, a grande razão que me faz escrever esse episódio cotidiano, é que a anciã que tanto fez pela pátria como tantos idosos, faleceu num certo Hospital da(utópica) Restauração, mas morreu aguardando uma vaga na UTI. Parece surreal tal absurdo! Mas 1 vaga na UTI poderia ter prolongado os dias da devota velhinha.
Dedico então essas linhas à Dona Biu: um número inocente que se junta na cruel estatística dessa chaga infernal que os governantes ousam em chamar Saúde Pública. E se não fosse o bastante ficar refletindo em nervosia tal fato, ligo a TV e sinto enorme dor e revolta ao ver que um garoto de 5 anos foi metralhado, por engano, pelos homens da Segurança Pública: pelos destreinados infames travestidos de PM´s!
Sim, Renato! "Que país é esse"?!

9 comentários:

Anônimo disse...

Nossa... Elilson, você já é jornalista... E é jornalista e poeta ao mesmo tempo, teu texto é uma mistura de Raimundo Carrero e Paulo coelho, teu texto foi mágico e real pra mim, em poucos minutos eu conheci intimamente dona Biu, conheci o corpo e a alma dela. Teu texto é um grito com classe, adorei a sutileza! Adorei a critica do texto, você a fez de uma forma fantástica, como é bom te ler, te sentir por aqui. Teu texto não é daqueles que causam desespero, mas teu texto é um convite de luta por um mundo melhor, é um texto que você acaba de ler e diz: eu estou contigo, vamos à luta! Ele abre os olhos e auxilia... Pois é, amigo, que país é esse onde a ordem é nenhuma e o progresso pouco é visto? Que país é esse que as pessoas morrem por falta de cuidados?

Anônimo disse...

Encantada, Encantada, você me encantou! Menino tô apaixonada por tuas palavras, amei o texto do começo ao fim. Que refino, que classe, que texto, que critica!

Unknown disse...

"Que país é esse?"

Que mundo é esse? Que pessoas são essas? Que poder é esse?
Nossa realidade é cruel. E nosso grito de indignação fica, muitas vezes, preso dentro de nós. Deve ser isso que nos torna cada vez mais culpados.
Começando por nós... AÇÃO! Nossos mínimos atos fazem a diferença.
No momento, pensemos positivo. Muita reflexão é necessária para que uma solução seja encontrada. Lutemos pelo nosso mundo!

[...]

Boa crítica, Elilson!

Cíntia Alves disse...

Epifania!!!
Cara tu consegues produzir em meio a qualquer situação...
Como Clarice te influencia!
É muito introspecto.
Continue...
Fica na Paz.

Fernando" M.Neto disse...

Não deveria todos se contaminar com tua diretriz e tuas palavras?
Essa altivez, nobreza e garra como quem sabe o que fala, esse verbo em afirmação forte, justificando-se nas entre-formas poéticas...

Amigo, mas a tua alma é esquentada, te tira a morbidez, pela sua vontade do querer...

Dona Biu, que já é digna de merecer esse espaço em nosso 'introspecto', foi urtigante memória e compartilhada vida entre nós, com essa narração ligeira, sem fadigas, acompanhadas em vírgulas, esperando um final: vida.

Mas ela partiu: ponto.

Amigo, continue...
agora ficamos aqui, compartilhados de dúvidas, aonde estás?
Queríamos uma segunda parte, talvez em narração augusta nordestina ou camoniana, quem sabe clariceana, a narrar Dona Biu em espaço que agora ocupa...

Filipe Torres disse...

Não sei como vc diz que eu escrevo bem!
Vc trata as palavras com tanta categoria e firmeza que eu gostaria de ter o mesmo dom!

Abraços cara!
E acabei de att o meu tb!^^
flw

Bárbara Lino ♥ disse...

Realmente. Essa vaga poderia ter dado uma chance para esta senhora.

A realidade é dura, mas não é impossível de mudar.

A parte que mais gostei foi a do cachorrinho... Ele foi a prova da fidelidade incondicional!

Abração!

Maíra Félix disse...

Estava lembrando aqui...

Enquanto a classe média reclama e fala em descaso pelos atrasos dos aviões, férias perdidas, coisas assim, tem uma fila enorme de pessoas na fila da UTI, procurando salvar suas vidas...

Texto muito bom.

abraço!

Tobias Farias disse...

É caro amigo, com o final endagador
de teu texto que reproduziu o estado estupefato do Renato, inicio meu breve e humilde contemplar de sua mais nova obra.

"Que país é este ?"

É o nosso país,o Brasil.
Mas, nos lembremos sempre, que com a mesma capacidade que temos de nos indignarmos com tais acontecimentos, podemos mudar essa realidade.
Somos novos cidadãos e cidadãs,
que como nossos pais ou tios puderam mudar parte de nossa realidade em 1984, podemos mudar a situação do nosso país.
Às ruas, às escolas, aos círculos de amizade, nós somos o poder de mudança.

Vivamos, nos preparemos,
pode não ser hoje, mas em um amanhã próximo com certeza, a mudança estará na mão de cada um de nós.

Vivamos, como cachorrinhos desta nação... que mesmo que a morte da mesma pareça certa, nunca a abandonemos.

Brasileiro com Orgulho,Pernambucano com Honra!
Seu leitor com satisfação.