terça-feira, 9 de novembro de 2010

21 Gramas de Vermelho

Contornou silenciosamente o batom em seus lábios. Olhou-se no espelho bruscamente, não conseguia encarar a si mesma. Sua face era a memória que não queria ter. Manteve-se em frente ao vidro manchado de fungos alaranjados, mas de vista tampada. Com as pálpebras obstruindo a duplicação da realidade, buscava a plenitude do silêncio. O Silêncio que gritou-lhe um leve suspiro de sua avó. Então, abriu os olhos e deu uma guinada de 360° apreciando milimetricamente o seu universo vermelho. Era a predileção cromática que herdara da avó. Viviam imersas no vermelho. Paredes, roupas, móveis... O que se tinha, era pouco e vermelho.
Entoou seu olhar em direção à cama da avó. Suspirou vagarosamente. Beijou-a demoradamente na testa macia, sem acordá-la. Um beijo leve, devoto e amoroso. Contemplava sua avó com uma nostalgia antecipada. Um saudosismo incerto. Estava decidida. Deixou-lhe um bilhete corriqueiro dentro da amarelada Bíblia de cabeceira. Certificou-se de que tudo estava em sua devida ordem e partiu completamente vermelha, dos sapatos ao diadema, ao seu labor diário: trabalhava noite adentro.
Era meticulosa em seu ofício e cumprira normalmente o que era destinada a fazer. Mas, aquela noite pareceu mais curta que o habitual e cada minuto fora despretensiosamente premeditado, pré-meditado, cal-cu-la-do.
À beira do amanhecer, com o céu caiado por dentro de seus olhos, sentou-se numa esquina acinzentada. Despiu-se dos sapatos. Enrolou num papel rabiscado o apurado do serviço e guardou no meio de seus seios. Cuspiu as sobras de esperma da noite e, então, deglutiu sem demoras quantidade considerável de veneno estricnina. Antes que o sol surgisse completamente, entre espasmos, vômitos e bombardeios no coração, as cores foram padecendo uma a uma em sua vista semi-aberta. Até que restou a imensidade vermelha inerente aos quase mortos. Lembrou-se da avó. Com a cabeça trêmula encostada numa parede enfeitada de lodo, tocou em seus lábios um sorriso que ameaçava escapulir. Padeceu embalada pelo vermelho e através do quase sorriso se desprenderam seus 21 gramas restantes de vida. Vermelho-vida. 21 gramas que pesavam sua alma.

4 comentários:

nilton leal disse...

minha nossa..! quanta criatividade, quanta maturidade na escrita - quanta ca-pa-ci-da-de! o que fazes com as palavras, o modo como dominas as letras e as 'obriga-livremente' a nos trazerem imagens a mente, é algo inacreditável. mago das palavras, inteligência personificada: admiro-te. só tenho a dizer isso.

parabéns! mesmo.
fã. antes de tudo e de todos, tens em mim um fã.

Fernando" M.Neto disse...

você continua descritivelmente impecável. é fantástico estar na tua leitura.
pp.
Fernando

Jonatas Onofre disse...

Não consegui reler. Teu texto não me permite isso é talvez um medo de perder a ingenuidade de leitor, de perceber uma arquitetura espontânea tão bem camuflada em tua sentimentalidade. Sou um leitor frio, até me chamam de calculista, mas acabo por me render a essas leituras, a essas imagens e cores ( não sou tão ousado com os adjetivos, nem tão inventivo) e se prefiro a obsessão pela busca, um martírio e um gozo infinitos, não deixo de sorver palavras de bons textos, mesmo quando são um intenso contraste do meu fazer. Como sempre fugirei do abstrato: Teu texto não chamarei de "belo", palavra que voa tanto, direi que é colorido, mas de um colorido só vermelho, um vermelho que esconde o branco que por sua vez esconde todas as outras cores da vida e da morte, que envolvem a realidade crua, asquerosa que nos cerca, isso gosto de encontrar de ver e mostrar, isso fazes muito bem. Pronto... mas uma vez minha prolixidade ( perdão ), é sempre assim quando termino boa leitura, necessidade de testemunhar... besteiras de leitor que deves relevar. Parabéns.

Natani Lima disse...

"quanta maturidade na escrita". Compreendendo e aprendendo.