quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Antes do sangue

Quando eu nasci ele tinha dez anos, quase onze. Quando ele morreu, eu tinha treze. A única coisa em comum entre nós dois é que éramos filhos do mesmo pai. Isso deveria ser algo no mínimo especial, mas não foi. Não tivemos tempo nem vida para que fosse. A primeira imagem que eu tenho dele talvez me remeta aos meus quatro, cinco anos. “Lá vem aquele frango bastardo”, era uma frase habitual que eu simplesmente crescia reproduzindo sem que isso fosse notado ou repreendido. Uma das imagens mais claras que eu tenho relacionada a ele, na verdade, é dos meus seis anos, limpando o meu rosto de seu beijo assim que ele virara as costas. Na minha cabeça de seis anos de idade não era errado aquele homem me beijar no rosto- o meu pai, os meus tios faziam o mesmo. Mas é que aquele não seria um homem como o meu pai, como os meus tios. Pensamento que eu certamente achava “estranho”, mas não tinha agência o suficiente para declará-lo equivocado. O que significaria a palavra equivocado? Ele vivia num abismo paternal, fraternal. Vivia à mercê de um pai, clamando pela presença de um pai, gozando da existência de irmãos- fingindo que esse pai o tinha, verdadeiramente, como um filho, que esses irmãos o viam como um irmão- que era a maneira mais fácil que havia encontrado para continuar vivendo. Dos parentes que ele poderia chamar de seus, a realidade não deveria ser tão distante. Era para ele que todos os dedos gostavam de apontar, porque ele simplesmente era um homem de unhas feitas e pintadas à base, um homem de sobrancelhas aparadas, curvilíneas, um homem de voz delicada, um homem de maçãs do rosto acentuadamente avermelhadas. Provavelmente, um homem à imagem e semelhança de sua mãe. Mas todo esse referencial feminino, num homem, não cabia bem. Até que aos vinte e quatro decidiu pôr um ponto em suas linhas que mal tiveram vírgulas, mas que só tinham reticências- que, diga-se de passagem, escritas por outros. Uma vida integralmente redigida e pensada nos “dedos dos outros” não deve ser nem... alegre. Ele escolheu morrer à maneira preconizada por Judas. Só que não foi numa árvore. E nem era ele um traidor. E se traiu, traiu a própria possibilidade de viver em conseqüência do que era alheio. Só que o alheio é, inevitavelmente, inerente. Ou não? Só que as pessoas não se deram conta disso. As pessoas não querem se dar conta disso. Nos meus treze anos, a maneira mais fácil foi viver fingindo que aquele acontecimento trágico não me era inerente. Foi uma fatalidade sem igual. Entendem? “Foi uma fatalidade sem igual” era a maneira mais simples para todo mundo. E se os pêsames eram recebidos, o pensamento imediato era: “mas nem éramos próximos”. E como seríamos? Eu sei que nos meus dezesseis, a tal da fatalidade foi me tomando por inteiro, como um estalo que surge no centro da consciência e vai criando uma geografia pelo organismo, uma geografia de culpa, de culpa pelo alheio, pois aquilo fazia parte de mim de algum modo, era inevitável. A famigerada ironia da vida brotava ali, em mim. Eu que tive pai, que tenho pai, que tenho tudo que ele não teve. Parece que eu nasci pra viver a vida que ele não teve. Todos os dias, de algum ou de todos os modos, construo uma história que ele decidiu não construir, que não permitiram que construísse. Porque eu e ele teríamos algo a mais de comum além do sangue. Ele se foi sem nem poder sorrir de tal ironia. Sei que a breve existência dele, ironicamente, faz parte de mim. Elilson Duarte. 09/10/12, 02h03.

4 comentários:

Fernando" M.Neto disse...

te senti lendo em voz alta a partir da metade da leitura. talvez esquecido dessa forma de literatura tão comum com a gente tempo atrás, tive que ir amaciando e acalmando a temperatura até me tornar consciente da fragilidade e urgencia do texto.

como sempre, aquele texto q faz quem lê estar lá. tua narração é incrível, velho.

e que história.

Eduardo Alves disse...

Sempre tão hábil com as palavras, não é?
E como não parabenizá-lo pela coragem?
Além de tamanha ousadia até para si mesmo...
Exprimir tanto íntimo, e publicá-lo para o mundo requer também força. Muita.Sem contar a honestidade.
Parabéns, Elilson. Bom ver um texto teu novamente.

nilton leal disse...

Das palavras que, juntas, misturam lágrimas e sangue – o mesmo sangue. Da pureza do olhar ingênuo de criança, à maturidade do entendimento da situação; da saudade de não ter aproveitado mais e/ou de não perceber que aproveitou o que pôde, naquele contexto. A construção do inesperado, do surpreendente, do não explicado – não por nós, pelo menos. Palavras que gritam a sensibilidade, a delicadeza do sentir e de conseguir transcrever isso em linhas, com letras (!), como você incrivelmente consegue fazer. Você. É [lhe] ler, sentir e calar.

Bom é saber que nada acaba aqui. Tudo isso é só o prólogo. E que todos os olhos, marejados ou não, pintados ou não, estão observando, admirando cada ato, cada declaração, cada texto-carta de amor. E abraçando em forma de aplauso, de aceitação e de respeito – como abraço de irmão.

Terminar lhe chamando de “mago das palavras” - como sempre faço quando lhe leio - seria, nesse caso, especialmente, superficial. [Meu] Pessoa descreveria melhor: “argonauta das sensações verdadeiras.” E tudo mais o que isso possa representar.

Ler, sentir e calar.

Uma vírgula. A minha vírgula.

Parabéns pelo texto, senhor Elilson!

Jonatas Onofre disse...

Aqui rompes o silêncio... quem esperou a palavra não se decepciona, sente o crescimento, o mesmo olhar tão profundo em perscrutar as coisas ao redor e as pessoas nas coisas, agora mais consciente de nossa inconsequência... a mesma necessidade de dizer e não sentir medo, mesmo que o que é dito seja tão profundamente aterrador, tão medonho em sua crueza de realidade, e a coragem é outra, firmeza...a mesma sensibilidade, essa capacidade estranha de ver coisas dentro de outras coisas tão outras, mas tão outras que onde todos os outros só vêem a superfície dura e impenetrável enxergas... isso é tão longe... senti saudades de tuas palavras e do que elas são capazes de produzir e também de tuas palavras sobre o que ousei inventar... senti saudades amigo-ator-poeta. Que bom teu retorno... que ele dure como o incêndio de tuas palavras... aqui...Abraço.