quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Manderlay é Aqui.

"...e a grandeza épica de um povo em formação nos atrai, nos deslumbra..." Caetano e Gil, "Haiti".

Bem, eu nunca havia assistido “Dogville” até semana passada, como também ainda não vi uma série de “cult classics”. Gostei de Dogville, gostei mesmo. Mas, algo ficou a ser preenchido dentro de mim que me faz recorrer ao clichê: o bolo era ótimo, mas faltava a cereja. Como não gosto muito de cereja, a não ser que venha em forma de confeito refrescante, senti falta de uma cobertura mais saborosa. O complemento veio hoje quando resolvi assistir à continuação, o filme "Manderlay". Contudo, não estou aqui para escrever sobre o filme, nem somente sobre o quanto possa ter mexido comigo. Estou aqui apenas para escrever. Escrever. Talvez esteja escrevendo nessas linhas digitais sobre como nada que nos acontece é por acaso. Eu não vi Dogville "tardiamente" por acaso: vi porque precisava assistir Manderlay, hoje. Também não parei na primeira quinta-feira de fevereiro pra assistir Manderlay por acaso: eu precisava escrever. Fato é que a obra do agridoce Lars Von Trier me fez, na tarde de hoje, sair da caverna, motivando-me a interromper o hiato da minha escrita e subitamente renovar o meu Filosofia Introspectiva.
Poderia estar publicando como minha primeira postagem de 2011 o desenvolvimento dos fragmentos de contos, frases... que venho adiando, engavetando há dias, semanas, meses. E também não deve ser por acaso, o ócio. Enfim, quando terminei de assistir até a última linha dos créditos finais do magistral Manderlay com sua reflexão ambientada numa América Racista e Opressora dos anos 30, que tão bem reflete a América contemporânea, a América de sempre, tal reflexão conduzida pela riquíssima (em termos cênicos) personagem central Grace, que pode ser em si uma das faces da América, me deu duas vontades enormes. Uma delas era de aplaudir o cineasta e gritar que ele é incrivelmente foda na esperança de que onde ele estivesse sentisse uma sensação boa (e que não seria, pois, por acaso), enquanto que a outra vontade eu só sentia, mas não sabia intitular. Então, quis escutar o meu disco "Do Cóccix até o Pescoço" de Elza Soares. Precisamente duas gravações, "A Carne" e "Haiti", que falam, como o filme, sobre todo esse mar de desigualdades que banha cada ilha que somos nós e que, na interpretação visceral de Elza, figura já tão oprimida, ganham uma força imensurável.
Porém, fui levado a interromper a vontade de ouvi-la por alguns minutos quando fui atraído pelo noticiário repetitivo na televisão. Vi duas imagens estarrecedoras. Numa delas, em mais um ato homofóbico, um jovem, branco, recebia uma lâmpada florescente com toda força, no meio da testa, em plena Avenida Paulista. Na outra, um mendigo, negro, era amarrado por três monstros e estupidamente espancado. As imagens me deram aquele nó na garganta, aquela sensação de impotência traduzida pela minha cabeça que, acompanhada pelo meu olhar horrorizado, balançava quase que involuntariamente em gesto de negação, de indignação. Foi, então, que descobri que a outra vontade que senti era escrever, eternizar essa tarde fraseando-a num papel. Quis escrever e assim fazer algo, não me esquivar totalmente dessa situação. Situação que somos nós. Embora escrever seja pouco, mas é alguma coisa. Quando escrevemos, abandonamos o nada.
Assim, antes de me deixar guiar pela caneta no papel, fui até o meu quintal, ouvir no último volume as gravações de Elza, propagando-as ao morro que me contém. Cantando junto com ela, via além, além, bem além daquele morro sem poder evitar: Manderlay, a cidade fictícia do filme, é uma realidade atemporal. É uma realidade aqui ou lá, no Brasil ou na América. Somos na verdade, uma versão mais pobre dessa América. Como ela, somos um país multifacetado, expansivo, plural, ambicioso e estagnado socialmente em demasia. Somos no fim das contas, estadunidenses ou brasileiros, um mero povo em formação.

P.S.:Se você também assistiu ao filme, já ouviu as canções, viu as reportagens ou simplesmente leu este meu moinho literário em que a palavra "que" aparece vinte e três vezes, saiba que (vigésima quarta aparição) nada disso é por acaso.

4 comentários:

nilton leal disse...

poderia me prolongar e falar, falar e f-a-l-a-r; poderia usar mais de vintequatro 'que' a fim de aplaudir-lhe em forma de palavras. porém, tomado pela força do texto e pela tamanha inteligência da criatura que o escreveu, resumo-me a um único adjetivo que expressará não completamente o que quero dizer, mas que por hora, ajudará a expressar o que berra aqui dentro:

G-E-N-I-A-L.

*_____*

nilton leal disse...

e sim, eu tenho certeza de que não estou aqui por acaso!

Hermínia Mendes disse...

PUTAMERDA!
Me vislubro ao te ler.

Jonatas Onofre disse...

você e essa capacidade de provocar o leitor. Posso confessar que há muito não parava pra ler uma crônica. Consegues me impelir a escrever (diria que minha reação foi identica a sua e que optei pelas duas ações que te dividiram: gritei(mentalmente) que és foda e depois resolvi encerrar meu silêncio)e se não sabes fique sabendo que só quem conhece os segredos das palavras consegue isso. Mesmo que pareça tão fácil ( não sei como consegues)sentimos o quanto de teu sangue, de teu corpo e de tuas cores colocas em teu texto...
Também não foi por acaso eu ter escolhido hoje, agora,para entrar nesses espaços depois de uma espera por vozes como a tua que me fazem refletir minhas sensações de tudo e principalmente reacendem em mim o sentimento ingênuo (que tantes vezes quer me deixar) de fé no homem e em sua capacidade de sentir a dor de seu próximo e lutar de uma forma corajosa pela própria felicidade.