terça-feira, 18 de maio de 2010

Há quem Padeça por Amar

Maio de 1997. São Paulo. Os dois voltavam em silêncio no carro. Na rádio tocava uma sucessão de clássicos da Soul Music. Eles tocavam-se pelos dedos. Em certos instantes, o que dirigia diminuia a velocidade para deslizar seus olhos na face do que estava no banco ao seu lado, sem cinto de segurança, com a cabeça curvada em sua direção. Passaram a noite juntos. Jantaram. Correram na chuva, abraçados, distante de suas residências, de seus trabalhos. Comemoravam um ano de relacionamento, um ano de amor compartilhado, de amizade, de apego.
Voltavam tranquilos pelas ruas, fazendo contornos maiores, pegando atalhos mais longos para continuarem ali, juntos um ao outro.
"Não precisa me deixar na esquina de minha rua. Deixe-me umas três ruas antes, já é o suficiente. Há iluminação, o bairro é pacato até demais. A boemia ainda deve está rolando solta, ficarei seguro". Repetiu a mesma coisa umas três vezes, fazendo com que o seu namorado, que dirigia, que ainda cruzaria uns vinte minutos para chegar em sua casa, acatasse aquele pedido.
Na verdade, ele não queria ter que ser alvo dos comentários da vizinhança na manhã seguinte. Sabia que sempre há um olho aberto quando a felicidade alheia está vivendo sobre a noite. Sempre há um dedo sujo pronto para engatilhar violência. Sabia que sempre existiria uma língua crua a soltar moralismo hipócrita pelas sacadas.
Na rádio começou a tocar uma gravação de Nina Simone que os dois adoravam. Pararam o carro. Cruzaram os braços, segurando firme a nuca um do outro. Era uma mania dos dois desde o primeiro dia em que trocaram carícias. Cantarolaram a canção até o último toque do piano. Deram-se conta de que já estavam no fim do percurso.
Não se deram conta que de fato a boemia rolava solta. Mas, uma boemia antônima à sua boemia. Quatro rapazes os observaram desde a freada do veículo, zombando, assistindo inexplicavelmente enojados.
Sem notar a infame companhia, despediram-se com um beijo. Um beijo curto, dado com cuidado. O namorado-passageiro abriu a porta e desceu do carro. Baixou-se na altura da janela e os dois trocaram com os lábios na ausência de som: "você é meu".
O que dirigia seguiu seu caminho. O outro seguiu caminhando. Faltava apenas umas curvas para chegar em sua casa e voltar à rotina. Então, percebeu as piadas, notou a presença dos quatro jovens, tão jovens quanto ele, com expressões de ódio. Fingiu que não acontecia nada de anormal. Apressou os passos, os outros quatro também. O medo fez com que ele desviasse o caminho, se distanciasse mais dali a fim de despistar aqueles homens. Até o momento em que não conseguiu correr, sentiu um medo que dominou sua movimentação, que deixou seus músculos rígidos. E aqueles quatro o cercaram.
Na rua inóspita seu corpo esbelto caiu na sujeira. Socos, chutes, cuspes, gestos que desmoralizavam sua moralidade, sua masculinidade. Arrancaram-lhe a calça. Ele tentou fugir, gritar, mas era impossível. Um táxi passou de repente. O homem ao volante conhecia um dos agressores. Parou o carro. "O que fez de tão grave esse aí?!", perguntou. "É só um viado". , respondeu o seu conhecido. Eles trocaram risos lastimáveis e o taxista partiu, sem o menor indício de piedade.
Continuaram a torturar o corpo do rapaz. Apostavam entre eles quem dava o soco que espirrava mais sangue. O namorado-passageiro só tinha um olho esquerdo semi-aberto. O direito jorrava sangue.
Um daqueles quatro opressores teve uma atitude ainda mais cruel: começou a utilizar uma placa metálica velha que encontrou na calçada deserta. E continuaram a matar pouco a pouco aquele recém formado jornalista que nunca fez uma gota de maldade a eles, que nunca nem havia cruzado o caminho deles.
Vinte e um minutos de pachorra, de ira, de desamor, de estupidez.
Antes do olho-esquerdo apagar, a última imagem que tinha era do sorriso de seu amante soltando sílabas apaixonadas.
Assim, o rapaz deixou de existir, virou um cadáver, outro número esquecido. Desfigurado, numa esquina suja, com os lábios formando um quase sorriso. Morreu na madrugada de 17 de maio de 1997, nove anos depois do amor que ele vivia ter deixado de ser considerado uma doença pela Organização Mundial da Saúde. Morreu no dia em que passaria a ser chamado de Internacional Contra a Homofobia.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Demora

Dedos misturando-se à penumbra.
Os cães ladrando nas beiradas da rua.

Silêncio de madrugada.

Os ventiladores ligados às tomadas elétricas da casa. Vida na escuridão. Sombra da cabeça dançando na parede, negra. Um resquício de reflexo no televisor. Embalagem de biscoito enfeitando o sofá. Notas agudas ecoando vez ou outra do computador.
Dois dedos que brincam de amar nas bordas úmidas do copo de vidro.
Pescoço que estala momentaneamente. Mosquitos pousando na tela, traços góticos de olhos que não dormem. O vento pincelando o telhado.
A palavra Deus nítida em um calendário.
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Há um santo torto dentro de mim.