terça-feira, 29 de setembro de 2009

Espelho Cíclico



Durante um longo período em nosso país, onde reinam intolerância e impunidade, as pessoas idosas foram duramente esquecidas pelo Estado. Os anos 2000, chegaram como um brotar de esperança a essa significativa parcela populacional, através da implementação de políticas públicas mais eficazes e, especialmente, pela vigoração do Estatuto do Idoso.
Numa sociedade como a nossa, em que a noção de direitos se perde em meio à banalidade da justiça e que viver implica num exercício de tolerar adversidades, acaba tornando-se fundamental leis que atendam às vulneráveis minorias, como é o caso da pessoa idosa e de seu Estatuto, que além de oferecer direitos óbvios serve para minimizar e controlar o amplo desrespeito que sofrem os idosos, que não só no ambiente doméstico, são também vítimas fáceis na vida urbana através da ação de bandidos, da imprudência de certos funcionários do transporte público e da falta de valores da juventude atual, que simplesmente se esquece do amanhã e "escanteia" quem tanto já fez pelo país.
Fato é que nos últimos anos a população vem tendo cada vez mais uma maior expectativa de vida, ou seja, os jovens de hoje provavelmente chegarão facilmente à terceira idade. O lamentável é que não há por parte dos jovens, em sua maioria, uma consciência de respeito ao exercício dos direitos dos idosos, o que acarreta numa "desgarantia" ao seu próprio (e próximo) futuro.
Assim, nessa vida que é eternamente cíclica e que se procede como num "dejà-vú" diário, a nossa juventude deveria perceber a dádiva que há em ter uma bagagem de décadas na vida e respeitar as pessoas idosas enxergando nelas um digno espelho do seu amanhã.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Retalhos


Minha casa está vazia. Os móveis e retratos ofuscam poucas frestas de luz. Tudo gira em foco preto-e-branco.
Passo os dedos nos lábios, a boca está seca. Consigo beber alguns goles, mas minha língua continua áspera.
Saio até o quintal, corro desvairadamente com meus cachorros, da mesma forma que amava fazer quando tinha oito anos. Logo um cansaço bate. Na última volta minha testa é cortada por um fio de náilon. O sangue nem pinga, endurece feito um ferimento no asfalto. Retorno ao meu vazio. Uma latência gigantesca toma conta do meu corpo. Nenhum barulho consegue chegar aos meus tímpanos. É um silêncio precioso.
Recolho uma muda de roupas, apanho uma toalha no varal. São 16h e no alto da cozinha se emite uma luminosidade negra. Entro no banheiro. As roupas deslizam em minha pele oleosa. Deixo a lâmpada apagada.
Do chuveiro, vejo-me perfeitamente através de um caco de vidro solto na parede oposta. Enxergo medo e angústia, sonhos e amor. Uma aparente sensação amarga. Solidão sublime. Encosto as narinas em minhas mãos, sinto cheiro de espírito jovem. Seria a introdução a um nirvana?!.
Um emaranhado de imagens se projeta em meu consciente, chegam a assemelhar-se com rosas brotando num arame farpado repleto de ferrugem. Solto um berro mudo. A água não pára de cair. Egoísmo imediato, nem se quer penso na Mãe, nem se quer crio coragem para desligar o chuveiro. E esse momento se torna único. Tudo retrocede e transpassa. Minhas mãos quase limpas vão decifrando meu corpo sujo. Meu cabelo está encharcado, minhas sombracelhas ásperas não protegem mais nada.
Inclino minha face fazendo com que a água sufoque meu ar. Meu corpo titubeia e quase cai. Repito tal ação algumas vezes. Descubro que a tal apnéia é mais excitante que cheirar éter, bem mais alucinante que sugar uma planta, talvez tão prazeroso quanto exaltar Baco* no Velho Recife.
Percebo-me mais leve. Enxugo a minha matéria. Visto uma nova roupa. Sento-me no meio da sala.
Fecho os olhos e estou no refúgio da Rua da Aurora. Tão longe de casa, tão perto da vida. Deito o meu corpo magro no chão limpo da Cidade Cinza. As folhas secas fazem sincronias. Os carros não passam. A beleza marginal está inabitada. O vento direciona o meu olhar até uma alta placa de sinalização. Ela balança desnorteada como uma palavra dita sem cuidado, feito uma bailarina bêbeda sem platéia: exatamente igual a como estava a minha alma. Vomito. O concreto histórico arranha minhas unhas. O sol bate com cuidado nos meus olhos. Ergo-me e percebo que nem é tão ruim assim.
Sento-me no meio da sala. Afago minha cadela. Faço um braseiro sem chamas com o isqueiro. Na vitrola ecoa em volume ambiente "Non, je ne Regrette Rien", o hino de Piaf. Suspiro duas vezes e solto risos bobos. Tenho de estudar algo, retorno a rotina das horas.
Fundo preto com letras brancas em itálico: aparece o título da obra.