domingo, 23 de agosto de 2009

Como a Literatura Cria Laços

Num feriado consumista de Dia dos Pais altamente nublado era nítido que não seria uma ideia sensata se dirigir até a redenção boêmia e noturna do Recife Antigo, porém algo internamente pulsava um desejo de caminhar, e foi exatamente o que fiz.
Alternativo da cabeça aos pés e carregando nas mãos "Bagagem", deliciosa obra poética de Adélia Prado, cheguei na Praça do Arsenal onde logo encontrei gente conhecida. Foi logo que um Homem aparentemente estranho se comunicou com um amigo meu, Bruno, e a rotineira discriminação me fez assumir postura imediata de receio.
Passaram-se alguns minutos. O mesmo Homem sentou ao meu lado. De um canto tocava o típico "forró de R$1", do outro ecoavam gravações sublimes de Vanessa da Mata. O Homem olhou para as minhas mãos e disse: "Posso dar uma 'sacada'?! Eu também gosto de ler". Entreguei-lhe o livro um tanto cabreiro e sem mencionar uma só palavra.
Bastaram uns oito ou dez minutos para que meus olhos começassem a se inundar. Aquele homem de aspecto maltrapilho, cheiro desagradável, e na cia de bebidas e um outro homem estranho, despiu a minha moral. Empolgado ele me falava dos livros que devora, me fez surpreendentes análises literárias de obras como "O Caçador de Pipas", "Cidade do Sol" e "O Guarani". Impressionado eu ouvia cada frase inteligente sem ousar interromper. A todo instante ele se desculpava por uma provável inconveniência. "De maneira alguma", respondia-lhe com interação. E ele me encantava com sua vida. Me dizia o quanto o cotidiano é cruel quando não se tem oportunidades e se mostrava surpreso com a minha atenção: "Poucas pessoas na vida me deram uns cinco minutos de ouvido, sabe?! Eu ainda sou um homem, mas um dia serei O Homem. Só não tive ainda quem me desse uma mão. Sei que não levo uma vida correta, mas irei mudar". Assim, eu dizia com cuidado a ele que nunca é tarde. E ele continuou: "Mas, me diga, qual é a sua graça?!" Disse-lhe o meu nome e perguntei o dele. O nobre Carlos então estendeu-me sua mão. "Estou sempre nas bibliotecas, mesmo que me olhem por baixo, já me acostumei. E todo dia sempre compro meu jornal, aquele de 'pobre' mesmo, de R$0,25, mas é que eu quero estar informado, para que nenhum outro possa pisar em mim só por ter Oportunidades".Oportunidades...era isso! Aquele homem que vive à margem, que é a representação perfeita do gueto, uma notória vítima do capitalismo ainda se mostrava feliz mediante à sua falta de oportunidades. Nos despedimos pela primeira vez.
Alguns passos mais a diante, nitidamente emocionado eu partilhava ao meu amigo Bruno todo o meu encantamento, contava-lhe sobre a conversa que valia por todo aprendizado que já tive, pelo instante que me fez crescer como nunca antes. Foi só o tempo de Carlos já está ali presente sensibilizando Bruno da mesma forma, incentivando-o a ler mais: "E não é só livro não, é até o outdoor que você vê na rua, a pessoa falando na praça", dizia aquele Sábio fantasiado de Maltrapilho. Nos falou ainda de sua paixão por Cazuza, analisou as composições e mencionou até sua opinião em relação à reforma ortográfica! Depois recordou de sua avó mencionando uma frase que ela lhe contara na infância: "Meu filho, não importa a força braçal de um homem, mas sim a lógica que há na mente dele". Algumas pessoas que estavam próximas achavam graça ao ver dois jovens dando atenção a um provável "bêbado".
Estupefatos, íamos embora lembrando cada filosofia daquele Homem, que obedecendo a gramática ou não, se expressava melhor do que muita gente letrada.
Então, após recusar a insistência de meu amigo em me acompanhar com sua turminha até a Av. Guararapes, temendo ser inconveniente, segui sozinho o meu caminho. Foi aí que ouvi a voz de Carlos a me chamar do outro lado da rua. Vendo que estava sozinho naquele perigo diário, me convidou a atravessar a ponte junto a ele e seu estranho amigo.
E a melhor conversa que já tive na vida continuou com brilho. Logo atrás se aproximavam dois meninos de rua, após repreendê-los, Carlos disse-me: "Não se preocupe, pode andar tranquilo, aqui comigo ninguém vai mexer com você". Assim, continuamos a falar de música, literatura e tudo mais que se expressa por leitura. Ele ainda me contou que tem três filhos e que era eletricista por formação, depois me perguntou curioso quais eram minhas aspirações profissionais, alertando-me inclusive, quanto aos impecílios do mercado de trabalho nas áreas.
A todo percurso, o olhar tenebroso do seu companheiro me dava calafrios. Foi então que sem exitar, ele agarrou o bolso de minha calça. Tive um susto imediato, mas O Leitor logo me salvou: "Enlouqueceu?! Querer maldar com um menino bom desses?! É meu amigo, pô!" O meu ex-quase assaltante ficou para trás e meu novo amigo me acompanhou até o ponto de ônibus. No meio da conversa descobri que moramos no mesmo bairro, que umas tantas travessias nos separam, mas não o confidenciei esse fato.
Ele ficava lisonjeado e irritado quando o chamava educadamente por "senhor", termo que de fato lhe era digno: ele era um exímio Senhor da vida. Assim, ele me dizia que eu seria um "protegido" seu nas ruas, que qualquer problema era só lhe procurar. Achando engraçado, eu o agradeci, ressaltando-lhe o quão iluminado ele é. Ele concluiu: "Iluminado é você. Sua aura é grande, menino. Os seus olhos são verdadeiros e me olharam na alma". Lisonjeado eu guardava cada palavra. Ele, sorrindo, disse: "Quando nos veremos de novo?! Já sei...nunca mais, né?!" Ao que lhe respondi: "Não. Sempre que o encontrar, esteja com quem estiver, pararei para cumprimentá-lo. Estou quase todos os domingos ali, no Bom Jesus". Carlos finalizou: "Pronto, nos vemos domingo, então. Pode me fazer um favor?!" Entusiasmado respondi com um "lógico que sim" dito num fôlego atropelado. E ele continuou: "Me traga um livro".
Após romper todos as minhas barreiras, o abracei me despedindo. Voltei para casa com lágrimas e com a mente bem leve. Contava as paradas para chegar em casa e poder desabafar todas essas palavras sobre uma experiência inefável em minha jovem Bagagem, pois pela primeira vez me senti prática além de teoria, descobri que posso estar num papo requintado numa mesa de bar sobre a encenação do espetáculo tal como também aprender a viver com o escanteado na esquina. Nunca esquecerei aquela noite de 10 de Agosto.
E eu precisava partilhar isso, me dispor a construir essa Epifania, como mesmo nos diz Adélia Prado, pois o meu artifício é escrever. Não me importa se tenho ou terei a licença literária ou poética dos Sapos letrados, pois se minha voz consegue chegar a um outro adolescente na frente de um computador e tocar um pouco a sua mente, estou satisfeito.
Antes que me esqueça: Obrigado, Carlos. Obrigado, Adélia.
Viva sempre a Literatura!

Adieu

O câncer dilacera pouco a pouco.
É uma armadilha cruel do tempo. O Tempo que é traiçoeiro e passageiro.
Abrimos as pálpebras e tudo muda tão de repente, tão arduamente.
A enfermidade depreciou progressivamente.
Mas, não tirou o exemplo, a força, a fé.
Ensinou que a cada abismo há sempre uma fresta firme de sapiência, a quem estava doente e a quem observou com lamento.
O inesperado sempre nos mostra o quanto estamos vulneráveis e o quanto temos a aprender.
Foi doloroso ver o seu estado e comparar com as memórias do recente passado. Contudo também foi de um grande louvor ver a esperança renovada naquele olhar dificultado pelo tumor, naquelas palavras vibrantes e iluminadas ditas com dificuldade imposta pelas chagas.
Mais de um ano de luta. Daqui para frente é o Luto pelo Adeus repentino.
As imagens que guardarei são daquele perfil de patriarca, daquela solidariedade, daquela enorme serenidade. Guardarei também, é verdade, a certeza de que poderia ter feito um mínimo de mais, que talvez fui inocentemente egoísta.
E as suas palavras ecoarão como um grande hino em meu consciente.
Descanse em paz, Grande Tio.

sábado, 8 de agosto de 2009

Ciclo Cromático


Minha lânguida face transposta ao espelho.
O que mais enxergo é o rastro da noite.
Eterna e úmida, necessariamente sem ponto.
Que se perde e se busca na leitura da Bagagem.
A minha alegria é negra.
O meu silêncio é claro.
Minha agonia é incolor e minha intrepidez já é ferrugem.
Paralisando imagens, removendo vírgulas.
Entregue ao acaso como um poste.
Mas, renovando sensações feito um rio fluente em águas translúcidas.
Apenas retendo os rumores.
Recolhendo escândalos em azul-neutro.
Montando uma semi-aquarela
da Solidão.
Que retrai e instiga.
Se camufla no sorriso forçado,
de quem quer vencer, amar e provar.
Provar-se. Cromaticamente e pincelado.
Simplesmente alçar a Paz Lilás.