terça-feira, 23 de junho de 2009

Cronologia Aparente


Ele que engateia por um sorriso. Ele que murmura entre os lençóis implorando pelo sono.
Ele que mais parece um camaleão: sua versatilidade de emoções é tão desatinada quanto seu amadurecimento em tão pouco tempo.
Ele que derrama "lágrimas pretas na face". Ele que suaviza seu martírio com atitudes manicômicas.
Ele que se prostra diante das formigas. No chão desabitado do Arsenal numa oportuna quinta-feira.
E sente o seu peso lutar contra o chão árido do Recife Antigo. Ele que nunca pára de permear sua alma dentre os oito cantos.
Ele que parece uma junção de personagens incoerentes.
Ele, que calado esconde suas marcas terrenas. Como aquela que ninguém viu. Quando sentiu sua epiderme romper com a ponta de um cigarro. Quando recebeu um jorro de saliva no rosto. Quando levou uma leve tapa nas costas.
Ele tem a marca que ninguém viu, que ninguém vê. A queimadura da mão esquerda que atingiu os poros de sua alma. Que o fez sentir-se desprotegido, fraco. Que o fez pensar em atirar-se na geometria dos ventos.
Por conta de atingir a hipocrisia, de ter coragem de manifestar-se em público, mas fora vítima de alguém que poderia ser seu reflexo, que tinha seus mesmos dedos de vida.
Mas, ele teve de chegar em casa e representar. E correr para o seu oráculo deflagrado. E ter de se contentar com um ódio efêmero e sem forças. E ainda assim, se colocar a suplicar por aqueles pobres meninos violentos.
Ele que carregará a dor de ser presa fácil da opressão. Ele que é mais inocente, malicioso e nostálgico que uma música de jazz.
Ele é admirado. Ele é odiado. Ele é ressaltado. Ele é um invisível ovacionado.

Cronologia Abundante

Clara nasceu num casebre sem janelas na Rua dos Alfaiates Ingleses, nos anos 30.
Migrou a vida inteira em busca de, em busca de quê?
Até que encontrou companhia fraterna. Não teve filhos, mas tem netos.
Teve um ou três amantes suburbanos. Sempre quis ter uma vida boêmia, mas faltou-lhe coragem.
Faltava-lhe coragem para se expressar, para gritar, para correr.
Nunca estudou, porém olhava aqueles inúmeros garranchos alheios com fascinação. Nunca ousara ter grandes sonhos, exceto o de escrever o próprio nome, o de poder abrir aquelas páginas empoeiradas, trancafiar-se em sua latrina e decifrar as frases uma por uma.
Contudo, sempre deixou para depois. Num piscar de olhos, já integrava o clube das lobas que nunca caçaram.
E foi adiando, driblando, tentado esvair-se da velocidade de transição dos segundos e minutos e horas e dias e semanas e meses e anos.
Talvez faltou quem lhe desse um apoio constante, mas hoje suas tentativas de aprender o seu desejo são suprimidas. Pois, ela tentou, mas já é tarde, pois o seu inverno está no ponto mais alto e numa acentuadíssima artrose, Clara não consegue nem segurar um lápis.

Ineffabile

Não consegui resistir o meu encantamento. Não pude desviar meu olhar.
Quão belo era aquele rosto. Quão cândida era aquela pele. Tão suaves eram aqueles olhos cor de paraíso.
Ela se levantou delicadamente. Me encarou de forma única, doce.
Decorei a sua parada, os seus últimos passos. Sentei em sua cadeira, tocando com prazer onde aquele anjo tocara.
Da rua, ela acompanhou-me com um sorriso calculado.
Virei-me a bordo. Suas expressões não saíam de minha mente. Sorria feito um bobo da corte com carta de emancipação, sem acreditar que tivesse sido "correspondido".
Não sei se quer o seu nome.
Se não vier a temer os rumos, irei desviar meu caminho de casa. Entrar e sair das ruas como se tivesse à procura de um tesouro.
Poderia ela causar um milagre em meus dias? Seria ela o ponto de mudança no meu destino?

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Parágrafo de Inverno.

Cavalgando entre o culto e a concepção. Cultuando perigosamente a solidão.
Um antagonismo imediato, a alegria em estar triste, tentar conciliar o pensamento medieval aos parâmetros clássicos. Como um simbolista sentindo no pescoço o quanto dói o Existir. São regras que se repetem, sensações que ultrapassam o tempo e permanecem dentre os dias. Monotonia amarga. Querem impor cláusulas imutáveis até para satira e lirismo. Isso é tão recalcado, é tão século XXI.
E tudo soa como muito barulho por nada. Hoje todos estão iguais perante a noite. Estamos na noite mais longa do ano. É solstício de inverno. O vento vai desenhando em nossos tímpanos. O céu fica resplandecentemente escuro. Correndo pelas pontes velhas. Banhado por pingos torrenciais. Tocando o próprio corpo, como numa frenesi sem limites. A chuva esgota as barreiras, cala o medo e desliza liberdade em minha pele. Eis uma sensação esgotada. Abrir os braços e correr perante o ar, sem se dar conta de olhares, sem sentir nem se quer o barulho inconveniente dos carros. Lamber a pele molhada, pressionar o tecido enxarcado, visualizar o amor idealizado dentre os dedos a deslizar sobre os cabelos.
Época de silêncio, de sintonizar a graça que há no firmamento apagado, nas cores neutras que se espalham por fora das janelas, de ver a lua vencendo o sol, de ver as águas do mar serem saciadas pelos trovões...
Mas, onde estará meu complemento? O que hei de fazer com minha insônia iluminada?
Meu hálito cheira a álcool. Meus olhos entram em despautério.
Do que estava falando mesmo?!

terça-feira, 2 de junho de 2009

Sou meu próprio Dogma

"Rezo todas as noites, pois acredito no amor"
Edith Piaf
De me sentir aprisionado dentro de minha própria alma. Essa é uma angústia que me assola constantemente. A sensação de clandestinidade. O apontamento alheio como se fosse um criminoso se formando gângster na arte de tentar ser feliz, feliz consigo mesmo. Agonia-me o fato de ter que me olhar no espelho e ainda não soar tranquilidade para mim mesmo. Quem me ver por aí, apenas acha que sou um "porra-louquinha" determinado, que não tá nem aí para todos esses preceitos e virtudes. Entretanto, as frestas de luz estão em racionamento. Temo em envelhecer cedo, mas é que são raros os instantes de calmaria.
Ponho-me dentro de um boxe sujo e derramo lágrimas puras que expressam tais tormentos. Sim, pois me repugno contra minha inocência. Confiei pedaços de mim a alguns que não foram fiéis. Há dentre esses, ex-esclarecidos, que hoje temem em apertar minha mão, limitando o seu conceito de amizade a uma janela de messenger. "Intimidade não tem volta", já me disse alguém antes, mas tudo isso é pouco pra lamentar o sentimento de ser uma decepção que jogam e jogarão em mim. Pedras invisíveis me atingem sem o mínimo pudor.
Ainda ali, no boxe de banheiro da escola, me comunico levemente com Deus. Às vezes percebo que toda essa metamorfose seja um dos motivos pelo meu afastamento aparente de Deus. Aparente para os Outros, pois todas as noites agradeço, suplico e peço perdão, pois sou capaz de sentir a misericórdia e a piedade divina todos os dias. O fato é que não quero mais nenhuma religião. Sou o meu próprio dogma. O cristianismo é sublime, mas grande parte dos cristãos o transformam numa fábrica de julgamentos e a última coisa que aturaria é me sentir mal numa igreja.
São tantas leis, tantas igrejas, tantas ordens, tantas seitas. Tanto afastamento, tanta indiferença, tantas palavras vãs. É a infinita busca do homem em se prevalecer diante dos demais. É a falta de reinvenção, de sensibilidade. Não quero parecer um revoltado, não. Respeito toda manifestação, mas é que todo esse escárnio purificador não eleva meu espírito nem um pouco.
Nunca teria a pretensão de querer adaptar as coisas ao meu jeito, logo apenas amadureço com tudo isso, pois a vida vai cada vez mais me mostrando que minha voz lutará ferozmente para ecoar, e que a minoria é delimitada pelo atraso. Assim sigo firme nessa minha inconstância sublime sem nunca me resignar com os desatines impostos , contando com o amor, que segundo me pregaram não condena, mas liberta sem distinções.